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A PARÁBOLA DO MAU SERVO

Por Carlos Alberto Maia Guerra

 

INTRODUÇÃO

A parábola do mau servo (Mateus 18.21-35), foi proferida por Jesus após a indagação de Pedro sobre o perdão ao próximo. Ao que tudo indica, essa questão surgiu logo após[1] o ensino de Jesus sobre a disciplina e o perdão: "Se o seu irmão pecar contra você, vá e repreenda-o em particular. Se ele ouvir, você ganhou o seu irmão” (v.15). Jesus estava ensinando aos seus discípulos que o reino de Deus possui valores distintos e aborda “a conduta dos seus discípulos como membros da nova sociedade trazida à existência por Ele — a comunidade messiânica”.[2] 


Sobre o autor

Pedro, ao que parece, compreendeu o ensino de Jesus sobre a disciplina e o perdão ao irmão, mas tinha dúvidas sobre a frequência com que deveria perdoar: Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe?(v.21a). Com seu caráter impetuoso, Pedro, antes mesmo de permitir que Jesus respondesse, fez outra pergunta, demonstrando uma certa compreensão sobre o assunto e expressando sua opinião: “…Até sete vezes?” (v.21b).


Pedro provavelmente considerou a regra[3] observada entre os judeus que, “segundo os ensinos da literatura judaica, era três vezes, quando Pedro falou em sete vezes, como padrão possível. Sem dúvida, pensou que sua regra foi extraordinariamente generosa”.[4] No entanto, a resposta de Jesus foi surpreendente e desafiadora: “… Não digo a você que perdoe até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (v.22). Sobre a racionalidade de Pedro, Hendriksen (2001) pressupõe que:


“Pedro poderia ter formado a opinião de que Jesus o elogiaria por sua generosidade. Nesse caso, sua expectativa foi frustrada. Havia algo de errado com a tese de Pedro. Cheirava a rabinismo. Soava como se o espírito de perdão fosse uma mercadoria que se podia pesar, medir e contar; como se a mesma pudesse ser parcelada pouco a pouco até um limite bem definido, quando, então, a distribuição tinha de parar”.[5]

 

Quando o mestre disse “setenta vezes sete”, ele usou uma hipérbole. O termo hebdomēkontakis (ἑβδομηκοντάκις) pode ser traduzido como inúmeras ou incontáveis vezes.[6] O ponto central do Seu ensino é que o perdão na nova comunidade inaugurada por Ele deve ser ilimitado. Isso demonstra a contracultura dessa comunidade, evidenciada na atitude dos seus membros, em contraste com a inclinação pagã de retribuir o mal com o mal sem limites, como representado por Lameque (Gn 4.24), destacando assim o padrão de Deus.


Jesus não pretendia estabelecer um limite legal, como faziam os judeus, nem contradizer “o que acabara de ensinar sobre confrontar um irmão que erra (v.15-20). O que Jesus queria dizer era que os discípulos humildes não deveriam limitar o número de vezes que perdoam uns aos outros, nem limitar a frequência com que perdoam uns aos outros”.[7] Seus seguidores precisam compreender que a resposta de Jesus não se baseava em um sistema aritmético, pois o perdão deve ser qualitativo e não quantitativo. Sobre a vida na Comunidade Messiânica, Tasker (2006) afirma que:

 

“A comunidade messiânica é primeiramente e acima de tudo a comunidade dos remidos. Deve a sua existência ao perdão tornado possível pela morte do Messias. [...] Impõe-se, pois, a cada membro o supremo dever, do qual tem de estar sempre cônscio sem jamais cansar-se, de perdoar o mal pessoal que acaso lhe façam. Uma vez abandonada a disposição para perdoar, perde-se a raison d´être, a razão de ser da comunidade cristã. A sociedade dos perdoados fica sem sentido, se os que são perdoados não perdoam (21,22)”.[8]

 

Jesus, após sua resposta emblemática e incomum, prossegue narrando a parábola do mau servo: “Por isso, o Reino dos Céus é semelhante a um rei que resolveu ajustar contas com os seus servos” (v.23). A história retrata dois servos que estavam endividados com seu Senhor, sendo que a dívida do primeiro é exageradamente maior que a do segundo. Apesar de ser perdoado por sua enorme dívida, que ele não tinha condições de pagar (v.24-25), e de receber a misericórdia do seu Senhor (v.26-27), o primeiro servo demonstra uma atitude oposta ao tratar seu conservo. Ele se mostra extremamente cruel e incapaz de perdoar e exercer misericórdia por uma dívida muito menor (v.28-30). Champlin (1995), ao abordar a parábola que ilustra o perdão, afirma que:

 

“A aplicação da parábola, aqui, ilustra a difícil lei do perdão e serve para mostrar que a comunidade cristã deve praticar esse espírito em todas as atitudes que afetam as vidas dos membros da comunidade […] O perdão de Deus é gratuito, incluindo até mesmo os proscritos e os piores pecadores. Os homens têm o privilégio de imitar esse ato, e, assim fazendo, tornam-se mais semelhantes a Deus e a Cristo, que é o padrão exigido dos homens por Deus. […] Aquele que perdoa é tratado por Deus com base na misericórdia, mas aquele que não perdoa não tem o direito de esperar mais do que um estrito julgamento contra seus pecados”.[9]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Jesus finaliza seu ensino sobre o perdão com uma declaração solene: “Assim também o meu Pai, que está no céu, fará com vocês, se do íntimo não perdoarem cada um a seu irmão” (v.35). Ele afirma dizendo que a “Graça desperdiçada provoca condenação”[10].

A parábola dita por Jesus “ensinou um certo tipo de relacionamento interpessoal baseado no perdão […] pessoal e o motivo disso. O Rei já havia perdoado Seus discípulos muito mais do que jamais poderiam perdoar seus companheiros discípulos”[11].

Jesus estava queria que os seus discípulos compreendessem que a atitude em relação ao perdão é fundamental e deve ser “do íntimo”, sem murmuração. Ele “salienta […] a urgência do dever de perdoar, e a terribilidade e as graves consequências da falha nisso”.[12]

Seu ensino mostra que, na nova comunidade criada por Ele, Seus discípulos não podem proceder como os judeus, que, apesar de possuírem as Escrituras e toda a sua história, nunca compreenderam que Deus é misericordioso e compassivo, e que não perdoa aqueles desprovidos dessas características.


[1] No presente contexto, o advérbio “então” provavelmente signifique “pouco depois”, visto que parece haver uma estreita relação entre a pergunta apresentada no versículo 15. HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento Mateus volume 2. Tradução: Valter Graciano Martins. 1ª ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001. p. 284.

[2] TASKER, R. V. G. O Evangelho Segundo Mateus Introdução e Comentário. Tradução: Odayr Olivetti. Reimpressão a partir da 1ª ed. São Paulo: Sociedade Religiosa Edições Vida Nova, 2006. p. 137.

[3] Se um homem pecar, a primeira vez eles o perdoam; a segunda vez eles o perdoam; a terceira vez eles o perdoam; mas da quarta vez não perdoam, de acordo com Amós 2.6 e Jó 33.29. CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo por versículo: Mateus e Marcos, volume 1.  2ª ed. São Paulo: Candeia, 1995. p. 472.

[4] CHAMPLIN, 1995. p. 472.

[5] HENDRIKSEN, 2001. p. 285.

[6] A transliteração e tradução da palavra grega segue a Concordância Exaustiva de Strong e o Léxico Grego de Thayer. disponíveis em https://biblehub.com/thayers/1441.htm e https://biblehub.com/strongs/greek/ 1441.htm. Acesso em: 10/07/2024.

[7] CONSTABLE, T. L. Notes on Mathew: 2024 Edition, disponível em https://planobiblechapel.org/tcon/

notes/pdf/matthew.pdf. Acesso em: 10/07/2024. p. 482.

[8] TASKER, 2006. p. 138,139.

[9] CHAMPLIN, 1995. p. 473.

[10] Quem não se torna misericordioso com a misericórdia de Deus e não aprende a perdoar a partir do perdão de Deus, desperdiçou a graça de Deus. [...] A graça de Deus transforma-se na ira de Deus. Vejam como é séria, seríssima, a palavra de Jesus sobre o perdão mútuo! É a inversão da prece do Pai Nosso: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores”. Desta feita, a formulação é: “Tu nos perdoaste a nossa culpa, por isso também queremos perdoar àqueles que se tornaram culpados em relação a nós.“ Para essa questão, cf. o exposto sobre Mt 6.12-15. “Não há como negar: O perdão é o coração da comunidade de Jesus. Quando cada irmão perdoa o outro de coração, então dois podem se unir em oração, corrigir-se mutuamente, buscar o desgarrado, superar o que é pernicioso, proteger os pequenos, e honrar os humilhados; então Jesus está no meio deles!” (cf. Vischer). RIENECKER, F. Evangelho de Mateus: Comentário Esperança. Tradução: Werner Fuchs. 1ª ed. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998. p. 211.

[11] CONSTABLE, 2024. p 483.

[12] Ibidem, p. 139.

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1 Comment


Beit Sêfer
Beit Sêfer
Nov 20

Artigo muito educativo e edificante.

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